O que comprar para uma criança de 8 anos? Consumo, infância e representações a evitar


 Há já algum tempo atrás, estive à procura de um presente de aniversário para um menino de oito anos no Rio de Janeiro. Difícil tarefa porque eu sou terrível em combinar presentes e idades. Lá estava eu, passeando entre prateleiras recheadas de carrinhos, jogos e homens-aranha (hoje seriam aqueles bonecos grandes do Star Wars), tentando encontrar um sentido que me levasse ao presente certo (uma combinação entre a alegria do menino e a minha consciência), quando esbarrei em um destes jogos que animam as crianças há décadas. Lendo a embalagem, vi que havia diferenças substanciais em relação às edições anteriores.

O brinquedo que me chamou a atenção era bastante antigo e conhecido - Banco Imobiliário, da Estrela - , transformado em "Super Banco Imobiliário". Havia também, nas prateleiras, jogos equivalentes, alguns voltados para a educação financeira (sic), outros para planejar o futuro brincando (como o "Super Jogo da Vida"). Impressionou-me duas coisas, logo de cara: o uso de miniaturas de cartões de crédito e débito e a presença de marcas reais fazendo merchandising para ampliar, em perspectiva, seu "share of mind".

Olhando mais atentamente, percebi que os jogos de maior sucesso giram surpreendentemente em torno de uma palavra: propriedade. As crianças são levadas a crer que o futuro depende da competição pela maior acumulação de bens (incluindo companhias e imóveis). Terão "uma vida melhor" aqueles que concentrarem propriedades e ainda conseguirem ganhar dinheiro com elas - em outras palavras, aqueles que incorporarem o hábito de "especular". Jogos como estes fortalecem a propriedade privada no imaginário infantil como a única realidade possível. Nunca vi um brinquedo de escala industrial que criasse a oportunidade de contato da criança com outros modos de pensar a propriedade, onde ideias como complementaridade, cooperação e reciprocidade fossem os princípios que levassem à pontuação. Algum briquedo que pelo menos cogite a perspectiva de propriedade coletiva? Dificilmente. Entretanto esta hipótese existe. Oficinas de brinquedo em escolas de Coimbra (realizadas no âmbito de um Mercado de Trocas para as Crianças) me mostraram que a criação de brinquedos coletivos é uma realidade possível, capaz de promover outros valores na infância.

Outra questão que me chamou a atenção nos brinquedos que vi foi a aposta na palavra crédito, fazendo com que as crianças incorporem este conceito desde idade precoce. Pode parecer que se trata de um instrumento de educação financeira, mas não é. O que estes jogos fazem, na realidade, é naturalizar um modo de vida, moldando, de maneira lúdica, a forma como a criança vê e lida com o mundo. Naturalmente, o crédito aparece, aqui, muito mais como forma de ascensão social do que como endividamento. O endividamento é a outra face, bem menos glamourosa, dos bancos e cartões de crédito, que aqui aparecem para divertir as crianças. No mundo infantil, o problema do endividamento logo se resolve quando o jogo acaba - situação bem diferente daquela que pode ser vivida por pais e parentes da criança que brinca.



Mas não são apenas os cartões de crédito e os bancos que entram no universo infantil. Com base em parcerias com a indústria de brinquedos, grandes marcas corporativas penetram no mundo das crianças, como se fossem parte concreta das brincadeiras, seja na condição de alvos ou objetivos a alcançar (um carro, um skate, roupas novas), seja como peça do jogo. Os pinos que representam os jogadores durante o Super Jogo da Vida, por exemplo, são miniaturas de um lançamento real da Fiat, numa clara exposição das crianças à repetição da marca. Misturando realidade e fantasia, jogos como estes capturam o desejo infantil de integrar o mundo dos adultos, adornando a experiência com uma narrativa de aventura e conquista. O merchandising cruza, assim, uma nova fronteira: torna-se parte das brincadeiras e constrói uma amálgama convincente de ficção e mundo real. Convenhamos, esta estratégia de comunicação mercadológica faz qualquer kinder-ovo ou Mclanche parecer uma ideia inocente.



As versões sustentáveis não são tão diferentes, como possa, em princípio, parecer. Preocupação com o meio-ambiente, créditos de carbono, construções sustentáveis são as promessas. Você pensa: bacana, meus filhos vão ter mais consciência se brincarem com um jogo como este. Não se iluda, porque a ideia central continua a mesma na sua essência: propriedade, competição, otimização de custos. Só que com uma ideia de fundo: a de que o modelo capitalista de produção e consumo possa ser humanizado. Pessoalmente, esta perspectiva não me parece, hoje, nem de longe suficiente, já que não problematiza questões de fundo, tais como o racismo ambiental (quando, por exemplo, indústrias poluentes e projetos de caráter duvidoso se concentram nas áreas mais pobres), a classificação social inerente ao consumo e as externalidades sócio-culturais e económicas que certos empreendimentos, de per si, provocam. Se você tem dúvidas, pesquise mais a fundo sobre os impactos sociais, económicos e culturais das empresas que estampam seus nomes em brinquedos como estes. Este assunto é tão polêmico que mereceria, em si mesmo, um post, razão porque eu só vou ilustrar com uma das primeiras frases no verso da embalagem da versão "sustentável" do brinquedo acima referido: "Você pode comprar a Chapada dos Veadeiros".

Depois de uns bons minutos procurando alguma coisa em acordo com a minha consciência, peguei um carrinho com controle remoto - a última coisa que eu pretendia comprar quando cheguei à loja. Passei pouco tempo entre aqueles corredores chamativos, mas o suficiente para ver, perto de mim, uma menina deslumbrada entre princesas muito brancas e barbies irreais, na dúvida de qual levar pra casa. Preocupou-me ainda mais a situação das garotas, para as quais a indústria de brinquedos acena com uma imagem ficcional de beleza e sucesso. Cinturas de vespa, um guarda-roupa de gala, acessórios aos montes. Bonecas que, quando não são princesas (resquício de uma aristocracia falhida), são o exemplo típico de uma mulher branca, ocidental, hetero, jovem e bem-sucedida. Muitos estereótipos em pouco menos de 30 cm de boneca, cujas medidas são impossíveis de conseguir. Estamos todos cercados por um imaginário que não nos permite envelhecer ou desacelerar.


Vivemos, assim, uma colonização cada vez mais precoce do imaginário*, em que padrões estéticos, orientações de conduta e estilos de vida são importados e consumidos como sinónimos inquestionáveis de vida boa, de ideal a perseguir. Não se trata de uma prerrogativa da indústria de brinquedos, é bom que se diga, mas do sistema económico com o qual convivemos todos os dias. As desigualdades observadas nas relações sócio-económicas entre países manifestam-se no tecido fino das relações cotidianas. Manifestam-se também, como não poderia ser diferente, nas representações dominantes que uma sociedade escolhe e reforça no dia-a-dia, seja inviabilizando questões étnico-raciais e de classe ou reforçando diferenças de género e sexualidade numa perspectiva essencialista e redutora. E estas representações habitam o mundo dos brinquedos. Todas estas formas de construir, simbólica e materialmente, a desigualdade e a diferenciação tem se manifestado, também, no modo como as crianças aprendem (dos adultos) a competir e a medirem-se pelo que têm, construindo suas identidades a partir de perspectivas dominantes. Um risco que merece atenção.

Felizmente, as experiências do mundo não se resumem a estas representações redutoras, embora sejam estas que alimentem os lucros de diversos setores da economia, incluindo a indústria de brinquedos. Cabe ao mundo dos adultos não contribuir para reforçar ainda mais os estereótipos desta e de outras tantas indústrias. As crianças que hoje brincam são, em potência, os adultos que amanhã decidem.

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*Colonização do imaginário é um conceito empregado por Aníbal Quijano.

As fotos estão em:
Brinquedos diversos: http://imguol.com/2012/12/17/brincadeira-caca-ao-tesouro-1355764033770_300x200.jpg 
Super Jogo da Vida: http://www.cuelho.com.br/novo-uno-no-jogo-da-vida/
Super Jogo Imobiliário: http://blogdodemar.blogspot.com.br/2010/10/voce-conhece-o-jogo-banco-imobiliario.html
Barbie: http://www.vitrinaecia.com.br/site2010/curiosidades_02.asp

Comentários

  1. Excelente reflexão! Espero assim que possível me aprofundar mais em outros posts de seu blog.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Olá, Tânia. Vi sua mensagem já muito dias depois de enviada. Há tempos não coloco material neste blog. Fico contente que tenha passado por aqui. Acho a ideia do presente coletivo bem bacana. Nunca tinha pensado nisto. O modo como preparamos as crianças para lidar com o apelo diário da indústria do consumo faz toda a diferença. Escrevi um artigo há alguns anos atrás que falava sobre construção de brinquedos coletivos nas escolas. Se todos constroem, de quem é o brinquedo? O que é mais importante: o brinquedo ou o brincar? Bom, fico contente que tenha apreciado o post e que o tenha partilhado. Um abraço, Luciane.

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    2. Entender a mensagem por trás dos brinquedos é super importante! Até o caráter dos pequenos podem ser influenciados por falta de consciência.

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  3. Amei o texto, super pertinente, sem radicalismos extremos. Li e reli. E ainda vou compartilhar por aí! 😍

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