A fome e a concentração de terra
Sempre que se fala de fome, dois argumentos voltam à superfície: o de que o problema é a quantidade de alimentos disponíveis ou de que o que falta a alguns países é uma aposta no desenvolvimento. Estas duas teses se alimentam mutuamente e oferecem condições adicionais para a expansão do capital nas entrelinhas do discurso de crescimento económico.
A pergunta importante pouca gente se faz: como é que a penúria alimentar se infiltra e se instala nos países? Ou, para sermos mais exatos, dando nome aos bois: como é que a crise alimentar e a fome vão sendo injetadas pelas leis de mercado na veia das economias? Josué de Castro nos mostrou, em seus escritos, que a fome não é produto de condições geográficas adversas, mas de um sistema sócio-econômico adoecido. Estamos diante da manifestação mais empírica de uma produção capitalista do espaço.
Para entender a fome e a pobreza temos que olhar para os padrões de propriedade vigentes no espaço social; temos que ter em conta as forças que os movem. A questão é que tanto a terra quanto o capital estão de um só lado, como fatores de produção. Ou seja, as terras, concentradas em algumas poucas mãos, pertencem aos donos do capital. O dinheiro, por sua vez, serve pra acumular mais terra e especular com o que nela se produz. Produzir também não é o mais importante, desde que se possa obter financiamentos com a terra em questão (como se tem visto em muitos países). A vertigem dos ganhos é a palavra de ordem.
Muito se tem falado sobre as razões da fome em vários países - Haiti, Filipinas, México, Brasil, Argentina, entre tantos outros. As razões atribuídas são inúmeras: fala-se de biocombustíveis, de consumo ampliado em países como a China, da redução de estoques que aumentaria a especulação (com o crescimento da demanda de ração para o gado e com safras instáveis por razões ambientais), de colheitas incertas e do preço do petróleo. Apesar de todas estas razões, que de facto procedem e mesmo interagem, a raiz do problema pode estar onde não se vê, como já nos advertira o geógrafo brasileiro Ariovaldo Umbelino: no modelo de livre comércio que não regula outra coisa senão as condições propícias de acumulação do capital. Comida é mercado e, como diz Ariovaldo, manda-se a quem pode pagar mais. E, conforme esta lógica se espraia na corrente sanguínea dos países, ela vai desenhando o cenário de pobreza e de dependência econômica em que as economias do Sul Global afundam.
http://centrodeestudosambientais.wordpress.com/2011/08/02/os-porques-da-fome/ |
É preciso ir muito além da ajuda humanitária - que, por vezes, esconde e tira o foco do ponto para o qual deveria olhar atentamente a Opinião Pública. É preciso voltar ao pecado original do modelo capitalista de produção: como se fabrica a sujeição econômica de uns em relação aos outros? Como são destruídas as condições de autonomia econômica e de soberania alimentar de um país?
No caso da fome no Brasil, o livre comércio se alicerça em três caixas de ressonância poderosas: 1) a comoditização dos alimentos; 2) a financeirização das estruturas de produção, conforme nos apontam os alguns estudos de Boaventura de Sousa Santos e 3) os modelos agrário e fundiário brasileiros, comprometidos até os ossos com as condições de reprodução do capital.
Desta tríade, que sustenta o modelo especulativo e de acumulação do capital no Brasil, a perspectiva de que o capital financeiro esteja agora a territorializar-se, debruçando-se sobre a cadeia produtiva de alimentos - como analisa Boaventura de Sousa Santos - desenha cenários nada promissores. Na contramão do que se deveria esperar, fome e produção de alimentos se tornaram complementares. A soberania alimentar parece distante diante dos impactos que a financeirização das estruturas produtivas promete provocar nos avanços da reforma agrária.
Se é verdade que a venda de terras para grupos econômicos estrangeiros tem se ampliado pelo interior do Brasil e 'concorre' com a formação de estoques de terras para a reforma agrária, este é só o ponto de partida do problema. A situação se torna mais aguda quando analisamos quem são os novos donos das terras e o que pretendem fazer com elas. Para saber mais sobre a situação de land grabbing no mundo, pode-se consultar relatório recente (2012) da Action Aid (http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-10-16/venda-de-terras-em-larga-escala-pode-agravar-inseguranca-alimentar-alerta-organizacao). Países com mais dinheiro têm transformado outros em verdadeiros quintais para a produção daquilo que consideram sua prioridade, comprometendo a soberania alimentar de países com economias mais frágeis. Assim, a China tem comprado terras nas Filipinas, no Cazaquistão, no México, na Tanzânia. A Coreia do Sul tem comprado terras em Madagáscar, no Sudão, na Indonésia, na Argentina e na Mongólia. A Arábia Saudita, por sua vez, vem comprando terras na Indonésia e no Sudão. Estamos assistindo a uma nova conformação geopolítica, uma espécie de colonização por controle remoto, sem "sair de casa".
Neste contexto neocolonial, é igualmente comum que economias mais frágeis, mas com forte colonialismo interno, sejam coniventes com transacções económicas prejudiciais à população local - caso, por exemplo, da Etiópia, cujas terras têm sido utilizadas para produzir arroz para a Arábia Saudita. E os etíopes, como ficam?
No Brasil, por trás do capital financeiro e internacional, estão a cana e a agricultura de irrigação - esta última, aliás, opção política e econômica que não só compromete a autonomia do semi-árido nordestino, como estraçalha as artérias da região para que por elas transite o agronegócio exportador. Pergunta-se: como fica a soberania alimentar diante da destinação de boa parte das terras brasileiras a um modelo de negócio que se alimenta da especulação financeira e cuja premissa é a garantia de solo, água e clima para a saúde econômica dos países do norte? Como é possível ignorar a correlação íntima entre a venda de terras no Brasil - muitas vezes nas mãos de fundos de pensão -, o crescimento do agronegócio exportador, a demanda mundial por etanol e a já tão enfraquecida soberania alimentar? Se são empresas estrangeiras que decidem o que plantar - usando pra isso espaço e recursos que são bens públicos -e se são elas que decidem no mercado financeiro o valor daquilo que produzem ou comercializam, que tipo de soberania alimentar pode daí resultar para um país do Sul Global? Que espécie de novo colonialismo estamos vivemos? Que multimercantilismo se desenha diante de nós?
A situação não pára aí. Com a regularização da situação de grilagem de algumas terras públicas a partir da lei ordinária 11763/2008 (antiga MP 422) e a consequente legalização de terras sem licitação até 1500 hectares (em alguns lugares, 900 hectares em outros), muitos milhões de hectares de terras públicas têm passado às mãos do agronegócio. Resta saber quais são os nomes que estão por trás da compra de terras e da legalização silenciosa da grilagem. No caso da compra de terras, não há dúvidas de que existe um novo rosto em cena: o do capital financeiro. George Soros e Adeagro, Wellington Management (administradora de ativos americana) e o banco Merril Lynch, entre eles.
Esta financeirização da cana e do agronegócio têm implicações extensas. As terras improdutivas no Brasil, que chegam a 134 milhões de hectares (números de 2011), deveriam ter por destino a reforma agrária no País. Mas os interesses atuais do capital apontam para outra direção. Especula-se no mercado de futuros e compra-se antecipadamente os alimentos que serão produzidos. A evidência da improdutividade pode se esconder nas entrelinhas do financiamento. E o financiamento, por sua vez, pode determinar, assepticamente, quais os caminhos que a produção vai assumir.
Se antes havia tanta terra destinada à pura contemplação - numa estrutura perversa de usufruto capitalista do espaço -, agora é provável que muita gente parada volte a se mexer. Pena que os produtos encomendados não se destinem à boca dos que têm fome, mas, sim, ao gado europeu que precisa de ração barata e à vertigem progressiva das bolsas. A comida mudou de função: tornou-se ativo financeiro na ciranda ininterrupta do capital.
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Alguns textos são muito úteis para entendermos a situação. Seguem alguns deles:
- Transnacionais de alimentos lucram com aumento da fome, de Boaventura de Sousa Santos
http://blog.controversia.com.br/2008/05/22/transnacionais-de-alimentos-lucram-com-aumento-da-fome/
- Venda de Terras em larga escala pode agravar insegurança alimentar
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-10-16/venda-de-terras-em-larga-escala-pode-agravar-inseguranca-alimentar-alerta-organizacao
- Terra pública na Amazônia: a propaganda e o engodo
http://cptrondonia.blogspot.com.br/2011/09/terras-publica-na-amazonia-propaganda-e.html
- A concentração de terras no Brasil
http://www.mst.org.br/A-concentracao-de-terras-no-Brasil.-Entrevista-com-Gerson-Luiz-Mendes-Teixeira
- Continentes à venda
http://centrodeestudosambientais.wordpress.com/2012/11/21/continentes-a-venda/
Fotos extraídas de:
- Foto 1: http://meioambiente.culturamix.com/agricultura/desvendando-o-agronegocio-no-brasil
- Foto 2: http://www.galizacig.com/avantar/opinion/16-9-2008/a-moeda-o-credito-e-o-capital-financeiro
- Foto 3: http://centrodeestudosambientais.wordpress.com/2011/08/02/os-porques-da-fome/
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