Sobre a necessidade de descolonizar as esquerdas


Minha gente, eu vou dizer uma coisa depois de toda esta confusão no fb de "je suis" e "je ne suis pas CH". Porque isto aqui já está como na época das eleições no Brasil - as pessoas se estranham, dizem coisas duras umas às outras e aparece sempre um ou outro de lado algum querendo discussão com vc. Então é o seguinte.

Eu sei que a revista é de esquerda, que tem uma história de luta pelo direito de ir na contracorrente e que morreram ícones que inspiraram toda uma geração de grandes cartunistas brasileiros. Neste ponto, é óbvio que não é possível senão lamentar - e lamentar muitíssimo - tudo o que aconteceu. Também é óbvio que ninguém, em sã consciência, será simpatizante do fundamentalismo islâmico ou do facto de pessoas perderem a vida por afirmarem um Estado Laico. No meu caso em particular, eu sou 100% a favor do Estado Laico e da preservação dos direitos plenos - seja na expressão da sexualidade e contra os efeitos sócio-morais da heteronormatividade, na liberdade religiosa, na equidade de género e na afirmação de diferenças (que permita reduzir as desigualdades históricas entre os grupos sociais).

Minha crítica está em outro lugar - na construção e banalização de representações sociais que alimentam estereótipos grosseiros sobre minorias e na afirmação de uma esquerda branca, míope e arrogante que não consegue ver os limites da sua própria concepção de mundo justo. Está na adoção de dois pesos, duas medidas, quando esta esquerda letrada pranteia e se revolta com a morte daqueles que considera semelhantes mas fecha os olhos para as chacinas e etnocídios que acontecem por aí, às pencas. Cadê a solidariedade com os palestinos, espezinhados como baratas em Gaza? Cadê a solidariedade com os 2000 nigerianos em Baga? Cadê a revolta com a morte em massa de civis no Afeganistão, na luta contra o Talibã? Considerados como gente ignorante por esta esquerda letrada, a crítica é bem menos contundente ou audível. No fundo, adota-se uma perspectiva evolucionista dentro desta leitura de "esquerda" - a de que se esta gente adotasse princípios mais evoluídos de democracia e direito, de certeza que não estava nesta situação. E assim, entende-se que não há problema em fazer as pessoas engolirem cápsulas de civilidade ocidental, como se o Ocidente fosse o único parâmetro considerável de como fazer as coisas.

A laicidade pode ser ótima, mas não pode ser imposta como regra nem transformar as convicções alheias em motivo de riso ou deboche, sob pena de gerar, ela mesma o antídoto ao que tanto preza - a tal liberdade de expressão. Que foi o que aconteceu, a meu ver, na França, quando o Parlamento Francês resolveu proibir mulheres de usarem o véu em espaços públicos - num lugar onde há uma significativa população muçulmana. Liberdade de expressão aqui seria o quê? Garantir que outros não tivessem liberdade de expressão? Ou seja, para não me alongar: não há um só modo de lutar pelos direitos das mulheres. Se alguém duvida, que acompanhe os trabalhos das feministas muçulmanas. É um erro importante tomar os valores ocidentais como "iluminação" do mundo. Há outras cosmovisões, outras estéticas, outras éticas, outras versões da História.

Há um limite, a meu ver, entre a crítica ao que aí está e o atiçamento de estereótipos e de formas veladas (ou não) de racismo. Uma esquerda que se preze não pode incorrer neste segundo caminho, que é o de um profundo equívoco epistemológico e político.

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