Policiamento preditivo e direitos humanos



Sim, eu devia ressuscitar minha tese de doutoramento sobre predição de comportamento (e abdução) via bancos de dados... Já lá se vão 10 anos. Mas de lá pra cá só se confirmaram os tempos da algoritimização do quotidiano. Na ocasião, pensava-se muito sobre modelagem preditiva para melhorar as estratégias de marketing e comunicação das empresas. Este exercício foi bem longe, é verdade, mas já havia, então, outras aplicações da chamada mineração de dados - para credit scoring em bancos (análise de risco para concessão de crédito), para montagem de gôndolas mais atraentes em supermercados e para previsão de jogadas e treinamento no futebol. Já nesta ocasião, embora o assunto fosse conhecido por um grupo bastante restrito de pessoas com conhecimento técnico específico, falava-se não só em predição, mas também em abdução. Isto quer dizer o seguinte: se no primeiro caso você parte de um gabarito, no segundo, a inteligência artificial é usada ela mesma para construção do gabarito. Coisa de doido.

Foi nesta época - 2003, 2004 - que ouvi falar, pela primeira vez, em web mining. O que se garimpava já não estava exatamente em grandes armazéns de dados corporativos - os data warehouses -, mas, sim, no próprio ambiente de rede, onde o mundo era o limite. Assisti nesta época - e um pouco antes - a um interessante movimento: muitas pessoas, voluntariamente, respondiam sobre seus hábitos de consumo para aceder newsletters com novidades e dicas sobre produtos e serviços. Intensificam-se os clubes de consumidores, os cartões de fidelidade com pontuação e um conjunto de benesses para aqueles que se deixavam esquadrinhar. Também nesta época ouvi falar dos agentes inteligentes na rede, que "rodavam" nos chats de conversa em busca de pistas sobre expectativas e insatisfações de clientes e potenciais clientes.

Os usos da tecnologia da informação seguiram, então, para o interior de outros domínios. Se seu uso no marketing e na comunicação significou a adopção de políticas de rastreio, seleção e exclusão (sem que o cliente desse conta do alcance destas ferramentas), o uso de datamining e outras ferramentas em outros domínios trouxe outras questões. Podem servir para minar direitos e reforçar preconceitos, sobretudo em relação às populações das periferias, aos imigrantes, aos grupos sociais vulneráveis e àqueles que resistem à supressão e negação de direitos em seus territórios.

O uso dos dados pode ter, hoje, uma aplicação geopolítica, verificando repetição de padrões e utilizando esta informação para ganhar terreno. Neste sentido, se pode servir para defesa, pode, também, servir para endurecer políticas discriminatórias de acesso a direitos e de controle ao trânsito de pessoas. Pode, igualmente, servir para fins de gestão da segurança pública nas cidades. E, aqui, é preciso também atenção: uma coisa é a predição de crimes (a partir de pistas) pra proteção de cidadãos; outra é o reforço de estereótipos que se escondem por trás dos projetos de (re)construção e mercantilização do espaço público e de controle do fluxo nas cidades.

A mineração de dados aplicada à gestão da segurança pública tem recebido um nome: policiamento preditivo.

Assim como a vigilância para fins militares e de segurança nacional, o policiamento preditivo também não constitui lenda. Há quem esteja investindo nisto. E eu me pergunto, sinceramente - dados os pré-conceitos que vicejam no imaginário social e que alimentam políticas de segurança pública e de "higienização" do espaço com vistas a salvaguardar o "cidadão de bem" -, se o que testemunharemos num futuro próximo não será o resultado nefasto destas políticas de predição na mobilização social. Em que medida este policiamento preditivo servirá à vigilância e à desarticulação de movimentos sociais (agora mais vigiados do que nunca)? Tal política não implicará o reforço da criminalização daqueles que são, já desde sempre, considerados como "gente de risco"? Porque a modelagem parte de uma "fôrma", de conceitos, de um gabarito, vocês sabem, né? Daí eu pergunto: quem faz o gabarito? Que valores o sustentam? Que estereótipos reforçam?

Lamentavelmente, acredito que a tendência não é que a justiça se faça, mas, sim, que a vigilância reforce os preconceitos. Sinceramente, não acredito que o Policiamento Preditivo vá realmente ancorar-se nos direitos humanos (como diz o texto abaixo). Acho, ao contrário, que os direitos humanos podem ser usados como argumento-escudo para justificar certas iniciativas de prevenção do risco.

Qualquer semelhança com o hollywodiano Minority Report não deve provocar comoção. A realidade se espelha na ficção.




Apenas mais uma questão: se facebook, twitter e outras ferramentas no ciberespaço podem ser úteis para fazer valer o direito dos cidadãos, porque ninguém fez nada a respeito de Lola Aronovitch, permanentemente ameaçada por homens que não suportam suas reflexões sobre machismo e direitos das mulheres? Lola já fez boletim de ocorrência e vem sendo persistentemente ameaçada de morte. Cadê a polícia preditiva nestas horas?

Para saber mais sobre Predictive Policying, consulte: 

Para rever o trailler de Minority Report: https://www.youtube.com/watch?v=q2bmImPNKbM

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Fontes das fotos:

Foto 1: http://ge2c.org/?p=174
Foto2:http://www.home-designing.com/2009/07/design-of-techno-environments-in-movies

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