Nem tudo que reluz é ouro: sobre o risco de banalização do político


Quero dizer, antes de mais nada, que fiquei muito em dúvida se deveria ou não escrever alguma coisa sobre as manifestações que se espalharam pelo Brasil nos últimos dias. Mas diante de tanta coisa que vi, li e ouvi, achei importante compartilhar algumas breves impressões.


No âmbito de uma democracia, acho mesmo que todo mundo tem o direito de emitir sua opinião no espaço da rua, ainda que esta opinião incomode e represente uma estreita visão política de mundo, como não é raro acontecer nas classes médias e nas elites urbanas. Mesmo que irrite muito a despolitização no uso de ocas palavras de ordem - esvaziadas de sentido na justa proporção de sua repetição banalizada -, é legítimo que cada um emita sua posição, que escreva seu cartaz, que empunhe sua bandeira. O que não significa misturar as lutas como se fossem as mesmas, em nome de uma paz branca que dilui a história.

A luta de classes não desapareceu das ruas e nem pode ser apagada em nome de simpatias de última hora. Quem nunca pega um ônibus ou trem lotado para se deslocar não pode falar em nome de quem leva duas a três horas para chegar no lugar de trabalho. Da mesma forma, o debate pela saúde pública e de qualidade não pode ser misturado, na sua concepção primeira, com os debates sobre aumentos abusivos nos preços dos planos de saúde. Nada contra quem usa plano - claro que não! - mas as concepções de saúde que norteiam os dois debates devem ser postas sobre a mesa. O debate sobre a saúde não é um só. Assim como não o é o debate sobre a educação, sobre a cidade, sobre a reforma política. Há muitos dizeres e pensares que duelam no interior destes debates. Há, por exemplo, quem pense que a corrupção está nos mecanismos que alimentam o voto de cabresto, sem necessariamene considerar problema o financiamento privado de candidaturas que põem sempre os mesmos nomes nos mesmos lugares. Pois é.

É urgente debater o sentido de violência nos dias de hoje, bem como os mecanismos institucionalizados que a alimentam. A violência não advém só da corrupção dos políticos nos quais a sociedade vota (e depois esquece). Ela está, também, no modelo de mundo que ajudamos a erguer, no lobby que naturalizamos, nas bancadas políticas que ajudamos a engrossar em número, na miopia (coletiva) que vê o crescimento como palavra de ordem. Os grandes projetos económicos são violentos - mas destas microfísica cotidiana da violência ninguém quer falar.


Onde eu quero chegar? Bom, dada a pasteurização que certos posicionamentos e palavras de ordem provocam no imaginário social, confundindo alhos com bugalhos, acho que as esquerdas têm a responsabilidade de não permitir que suas pautas sejam confundidas num imaginário social difuso. E muitas pautas correm, sim, o risco de serem silenciadas pelo burburinho das palavras de ordem espetaculares que hoje são abundantes nas manifestações. A luta não é contra a Dilma em si ou contra o PT, como muita gente anda aí dizendo, de forma oportunista. Isto entretanto não significa ser conivente, nem de longe, com posturas que o governo vem tomando em relação a antigas e justas reivindicações dos movimentos sociais. Movimentos, aliás, que têm sido sistematicamente reprimidos pela polícia e criminalizados pela mídia.  Há muita clareza na pauta dos movimentos sociais - e esta clareza não pode ser negociada - nem mesmo em nome de uma "revolta em escala".


O compromisso deve continuar com aqueles que têm urgência de sobreviver aos colonialismos económico e interno (Santos, 2007) que se espraiam não só em território nacional mas por toda a América Latina. A luta é pela reforma agrária, pelo direito à cidade no sentido mais amplo do termo, pelo fortalecimento do SUS, pela demarcação das terras indígenas, pelo basta à remoção das favelas e das pessoas por interesses de privatização da cidade, pelo basta à corrida desenvolvimentista por trás dos interesses minerários, das grandes hidrelétricas e barragens, por políticas afirmativas que chacoalhem a pirâmide social. Isto tudo é muito sério e não pode ser engolido em nome de uma paz branca ou de uma aliança que subestime o abismo entre modelos de mundo. A nossa luta é por um modelo alternativo ao modelo neoextrativista de desenvolvimento. E não por melhores condições de consumo.

É preciso cuidado com a distração do olhar. É preciso cuidado com o esquecimento da História (sem perder de vista que também ela, muitas vezes, escreve com o sangue dos vencidos a versão dos vencedores). As manifestações por todo o Brasil foram de grande relevância no atual cenário. Sem dúvida que foram. A participação dos jovens evidencia que tem muita gente de olho no que se passa por aí - e isto é bom. Contudo, diante do rumo que muitas manifestações têm tomado e da manipulação política que se espraia nestes espaços - muita gente querendo abrir uma brecha para que governos de direita entrem - é sempre importante lembrar que "nem tudo que reluz  é ouro". A banalização do político, da dimensão política dos debates, tem um preço. Pior do que o abismo explícito entre as classes (que é criado no dia a dia das escolhas) é a banalização da consciência que faz parecer que estamos todos na mesma luta. Como disse Zizek, numa reflexão que considero bárbara:

"(...) a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1% da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados – mas agora nós os queremos de volta".

É hora de não permitir que o sono venha. Isto nada tem a ver com a máxima difundida por aí de "acordar gigantes". Isto seria trazer perigosamente para o imaginário social a repetição do silêncio. O que precisamos fazer despertar, mesmo, é a nossa consciência. 

Quanto às esquerdas, parece-me que o mais sensato é não permitir que as pautas de luta se diluam num mar de ocas reinvindicações.

Fonte das fotografias:

Foto 1
http://noticias.portalbraganca.com.br/nacional/manifestacoes-no-brasil-manifestacao-em-sao-paulo-ja-reune-30-mil-pessoas.php
Foto 2
https://encrypted-tbn2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSGOO_wD0db17ZClTu_bZmzsclVUE1ehncdo_CHRLuIsFjA0t3spQ
Foto 3
http://blogdobanu.blogspot.com.br/2011/04/comunidades-quilombolas-lutam-por.html

Para saber mais:

SANTOS, Boaventura de Sousa (2007). “Para além do pensamento abissal”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, Outubro 2007: 3-46.
SANTOS, Luciane Lucas dos Santos (2013),  "Os impactos do modelo de desenvolvimento na dignidade humana: interculturalidade e construção de novas sociabilidades como antídoto à violência estrutural". Conferência no MASP. Trechos disponíveis em http://monoculturadoconsumo.blogspot.com.br/2013/06/conferencia-os-impactos-do-modelo-de.html.
ZIZEK, Slavoj (2011), Discurso aos manifestantes no Occupy  Wall Street. Disponível em http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/

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