Uma ferida que não fecha ou um sorriso que não cabe?


As entrelinhas do trabalho como bem

O trabalhador continua alienado e produzindo, socialmente, riqueza. Mas agora crê, na multiplicidade de formas que o trabalho contemporâneo assumiu, que seja portador de uma insígnia, de um passaporte que confira distinção social. O trabalho se mistura ao consumo e à identidade de uma forma perversa. Passa à condição de bem para as camadas médias urbanas.  Mas não só para eles: os batalhadores de Jessé  Souza, na impossibilidade de um espaço menos informal e precário de trabalho, também se crêem empresários de si mesmos. O consumo logo irá encontrar um modo de digeri-los como nicho de mercado. Neste cenário em que o trabalho parece perder força como tema de debate, os proletários invisíveis da divisão internacional do trabalho são massacrados não só pelo apetite e velocidade das engrenagens do consumo, como também das máquinas que cospem a toda hora novos produtos. Que o digam os operários da China, de Bangladesh, do Sri Lanka, da Indonésia.

A lógica do capital se reinventa nos modos sofisticados de subsunção do trabalho. Operários invisíveis da divisão internacional do trabalho, trabalhadores produtivos e improdutivos das classes médias urbanas e batalhadores precários, todos integram o mecanismo de produção de riqueza. Marx não morreu, mas o estardalhaço e os apelos do "prèt-a-porter contemporâneo" tornam sua voz quase um sussurro.  Mesmo nos debates acadêmicos. Passamos a acreditar (e o imaginário social assim o demonstra) que a riqueza produz trabalho. Esta inversão é importante, já que revela o grau do nosso adormecimento. Nossos olhos já não alcançam a idéia de que a propriedade privada dos bens de produção só é possível porque se materializa na riqueza socialmente produzida (conforme lembra Herold Júnior). A alienação aprofunda-se, material e simbolicamente, nos corpos dos trabalhadores, quaisquer que sejam eles. A estrutura de classe permanece  divisora de águas - ninguém se iluda do contrário. Mas, no final das contas, todos são, de um ou outro modo, cooptados para as promessas de realização do consumo. O consumo, espetacular como sempre, mertiolatiza (logo, cala) a ferida que não se fecha: a de que a riqueza de alguns poucos se fundamenta no trabalho de alguns muitos.


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