Poética da Resistência: o Monumento Mínimo

Sim, o consumo simbólico pode servir pra pensar

Aprendi com minhas amigas Andréia Moassab e Néle Azevedo que a arte pode, efetivamente, conferir voz aos muitos homens e mulheres invisibilizados pela produção do espaço no cotidiano das cidades. Com as duas entendi que o espaço urbano é campo político para uma batalha diária. A arte nas ruas funciona como antídoto: denuncia guetificações, ressignifica sujeitos invisíveis, torna audível o que a produção capitalista do espaço tenta silenciar.

Andréia Moassab escreveu uma tese belíssima sobre hip-hop, mostrando que a música pode recontar, na voz da população negra, a História que nos foi negada. Sobre ela falaremos oportunamente. Néle Azevedo, por sua vez, interpela a idéia de monumento oficial e instala, na carne da cidade,  seus pequenos homens de gelo. Criou, como poética da resistência, o  Monumento Mínimo. Percorrendo várias cidades do mundo - Tokyo, Kyoto, Havana, Cidade do México,  Stavanger (Noruega), Brasília, Campinas, São Paulo, Salvador e Curitiba -, suas esculturas em gelo, ora em ações solitárias, ora em instalações coletivas nos marcos históricos urbanos, nos levam a pensar o indivíduo anônimo, com suas dores silenciadas, seus medos, sua coragem e persistência. Mas nos levam, também, a pensar na força político do encontro destes anônimos. O Monumento Mínimo ganha, a cada dia, maior repercussão internacional, sendo retratado em livros de editoras de peso como Taschen e Gestalten. O site de Néle Azevedo conta mais histórias sobre o Monumento Mínimo e outras intervenções suas igualmente importantes.


Abaixo, depois de algumas fotos, reproduzo um pequeno texto que escrevi para o livreto que Néle apresentou na Alemanha. Chama-se Ícaros Urbanos.




 Ícaros urbanos

Alheia aos ritmos e modos de vida que não compreende, a modernidade ocidental tatuou a indiferença e a aceleração nos corpos humanos. Mergulhando os homens em uma efemeridade produzida - onde tudo é fugaz, espetacular e pouco profundo -, liquefez afetos e laços e tornou a solidariedade uma palavra logínqua, quase incompreensível. 

Na contramão desta indiferença que asfixia o que é vivo e oferece destaque aos vitoriosos, o Monumento Mínimo opta pelo homem sem rosto, desconhecido. Ode poética à resistência, conta a história silenciada de homens e mulheres comuns no caminho de seus sonhos, conferindo visibilidade à luta, solitária ou coletiva, dos que não desistem, mesmo quando o concreto do mundo mastiga ou dilui.

Estes minúsculos heróis, anônimos, cujos sonhos desconhecemos, resistem enquanto podem, encarnados na dureza do mundo, mas jamais protegidos pelo bronze que eterniza, isola e distancia. São vulneráveis na sua corporeidade. O calor, o vento, uma mão pouco delicada podem reduzi-los a uma simples poça d´água. Engana-se, porém, quem os considere frágeis. Ganham potência como coletivo e revelam força inabalável, qual seja seu destino.
 
Se é da ordem do humano lutar contra a morte, é justamente porque nada dói mais no corpo do que o esquecimento. Se todo homem busca um lugar entre as franjas da memória, logo descobre que lápides ou materiais nobres para contar sua vida não lhe dão garantias. Os heróis cotidianos e anónimos, aqui representados por estes pequenos homens de gelo, não demandam honras e glórias; antes contam a história de seus feitos e sonhos com o próprio corpo – às vezes o único recurso que têm. Por isso são heróis: resistem como podem, humanos que são, e não desistem de suas trajetórias. Com seus corpos frágeis, sempre a beira das intempéries do mundo de concreto, testemunham com o corpo a insistência do humano diante da finitude que o caracteriza. Ícaros do asfalto, estes minúsculos homens de gelo resistem poeticamente ao apetite irredutível do tempo, sem medo de transformar seu corpo na única evidência de sua coragem.

Luciane Lucas dos Santos é investigadora no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

Mais fotos das instalações de Néle Azevedo. A primeira em Paris, a segunda em Havana:

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