Sobre aborto, construção social da maternidade, gozo e desejo social de oblação.


Se usou método anticoncepcional e ainda assim engravidou, é porque não se cuidou, tipo "agora aguenta". Se aborta, é porque ceifou uma "vida". Se abandona, lhe perguntam "por que é, então, que engravidou"? Se dá a criança é porque "não tem coração". Se opta por não ter filhos, é taxada de incompleta. Na verdade, não há escapatória para o julgamento social. A punição vai bem mais além e difícil é enxergá-la com clareza - trata-se da reprovação social prévia do gozo da mulher, sempre perigoso e ameaçador aos olhos de uma sociedade que não se reconhece como misógina. Neste contexto, a maternidade pode se tornar uma armadilha, uma espécie de pedágio que a sociedade cobra para negociar o direito legítimo ao gozo. 

No aborto das mulheres, vários dedos apontam, ameaçam, abandonam, punem. Enquanto isto, no aborto e no abandono dos homens, nem uma palavra sequer. Porque homem, sabe como é, é assim mesmo, dizem. Mulher é que tem que se cuidar. Se não quiser engravidar, garanta que isto não lhe vai acontecer. Se o destino lhe presentear com a gravidez, seja exemplar como mãe - e não aceite menos como resposta.

Me impressiona ver a veemência com que vozes (inclusive de outras mulheres) condenam toda aquela que diz não à maternidade, seja de que forma for. Há sempre uma voz que se levanta para dizer que podia ser diferente - que mulher que é mulher tem que ser mãe, que mãe que é mãe concilia, que mãe que é mãe encontra tempo, que mãe que é mãe arruma um jeito de sustentar seu filho, que mãe que é mãe dá seu jeito. O que esta voz não faz é manter-se em cena no apoio a esta mulher quando ela, por desejo ou imposição social, aceita a condição de mãe. Não, aí as vozes murcham, silenciam. Gozou? Então agora aguenta. E a mulher que se vire, mesmo que o dinheiro não dê pro fim do mês, que a patroa não "dê arrego", que o emprego não permita conciliar jornadas de 8 horas e cuidado de uma criança pequena, que não haja um dinheirinho pra creche ou pra vizinha da frente, que o namorado/marido/amante/ficante vá embora e a entregue à própria sorte. 

Quem paga o pato, invariavelmente, é a mulher pobre (e não raro, negra), mostram as estatísticas. Esta que se morrer ninguém dá por ela. Mas ai desta mesma mulher se decidir não ter o filho ou se, não tendo condição de o criar, o der a outra pessoa, conhecida ou não. Será execrada, amaldiçoada, humilhada. Da história e das impossibilidades destas mulheres, ninguém quer saber. Não é relevante para o rosário de acusações. O que importa é que ela pague o pedágio pelo gozo ou pela possibilidade de o ter tido. Um olhar um pouco mais atento nos permite ver as entrelinhas dos clamores por justiça: o que o imaginário social quer e não abre mão é da oblação, da garantia do sacrifício, de uma espécie de quarta-feira de cinzas em que o corpo punido, imolado é sempre o da mulher. As experiências das mulheres diante da maternidade são diferentes - mas quem se importa com isto?!






Não, não se trata de uma ode à não-maternidade. Se trata de uma reflexão sobre como a maternidade se inscreve, neste imaginário, como a condição mais nobre que uma mulher pode almejar. Trata-se de refletir também sobre como esta maternidade não diminui a pressão sobre  a mulher nem a quantidade de dedos voltados para a acusar sempre que não cumpre plenamente com seu papel de mãe. Trata-se, ao fim e ao cabo, de ter em conta como a maternidade "pode" funcionar como uma espécie de sedativo social, já que o corpo da mulher-mãe sempre parece ao Estado e às instituições mais dócil e propício ao controle. 

Quando falo em sedativo social e biopolítica da produção do corpo da mulher, me refiro aqui à construção social da maternidade como um lugar, um espaço discursivo com materialidade na vida das mulheres de carne e osso. A maternidade - seja uma experiência de delícias ou a impossibilidade mais concreta na vida de uma mulher - é uma construção social que tem sido acionada por instituições, pela sociedade misógina e por instâncias de reprodução social, como representação propícia ao controle político do corpo das mulheres. O corpo da mulher-mãe é quase sagrado no imaginário social - não pode errar, não pode perder tempo com questões que não digam respeito à prole, não pode evidenciar, nem por um nasgo de pele, que haja algo mais naquele corpo do que o lugar da mãe. 

Absurdo? Claro que sim. Mãe não pode ser imperfeita que os dedos se levantam. Mãe não pode sexualizar. Mãe não pode se sentir dividida em prioridades ou parece que virou não-mãe. Mãe não pode contrariar as expectativas sobre ela. Mãe não pode ser mãe ao seu modo e expor seus dilemas. À mãe não é permitido viver a contradição, a dúvida, o desvio. O Estado alimenta este imaginário, a sociedade machista alimenta este imaginário, os mecanismos de reprodução social alimentam este imaginário. Fazem-no sempre que desenham a figura da mulher-mãe como um outro lugar - entendido como mais valoroso, poético, desatrelado da realidade de muitas mulheres e praticamente assexuado. O discurso sobre as mães gira em torno de experiências pouco reais. É como a cintura de vespa da Barbie. Serve mais para torturar as mulheres do que para ser conseguida como medida. Cobra-se da mulher que persiga o lugar da mãe perfeita, que referende este imaginário e participe da sua reprodução na relação com as outras mulheres. Este é o lugar do controle biopolítico do corpo da mulher. Entender isto é o princípio da construção de uma noção mais humana de maternidade.

O homem que foi embora ou que tem mais o que fazer? Bom, este usualmente não está na pauta de discussões.

Para pensar.

Sugestão de leitura:  Brum, Eliane. A safada que "abandonou" seu bebê - http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/12/opinion/1444657013_446672.html

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Imagens:

1: http://rsbloggers.com.br/2016/08/12/maternidade-volta-ou-nao-ao-trabalho-blog-baby-lo/

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