Consumo cultural, banalização da pobreza e o Outro como ficção de si

Quando Hannah Arendt falou na banalização do mal, houve quem achasse que esta naturalização da indiferença não podia existir, que este olhar baço para o sofrimento dos outros só podia ser um ato de monstruosidade. Arendt mostra exatamente o contrário - que é preciso rever o sentido de monstruosidade e de absurdo, já que o mal absoluto reside exatamente na banalização naturalizada.

Hoje apareceu uma destas aberrações na internet. A notícia de um hotel de luxo na África do Sul - o Emoya Luxury Hotel and Spa, com sua Shanty Town - que fornece aos seus hóspedes a experiência da pobreza, colocando-os num simulacro de favela. Foi mesmo isto que vc leu - simulacro de favela. Para que os ricos sintam, de forma segura, o que é ser pobre. Como se se tratasse de uma experiência sensorial, estética, exótica. 



Depois das hordas de turistas sem-noção fazendo tour na favela, achando que tudo se trata de um cenário para trazer cor e emoção às suas viagens - e em que os moradores têm a vida quotidiana transformada em ficção -, é a vez dos hotéis-favela, simulando a experiência da pobreza. 

Se no tour à favela, o morador é convidado a fazer figuração de si mesmo, a ter sua realidade construída discursivamente como cenário para a experiência de um Outro (que, muitas vezes, lhe nega a existência e os direitos no asfalto), no hotel-luxuoso-que-é-favela, os pobres podem até ser apagados do cenário. Como se a pobreza fosse apenas um infortúnio ou um modo de estar exótico, primitivo e improvável, desconectado da expropriação sócio-cultural e económica materializada nos corpos de quem vive a pobreza todos os dias. Parece haver uma perversa perspetiva higienista nisto tudo, em que os pobres e suas histórias de vida são vistos como algo passível de ser apagado num processo banal de edição. Como se fosse possível, na experiência sinestésica e espetacular de "consumo", eliminar o Outro, tomar de assalto sua história e ocupar ficcionalmente o seu lugar, recriando, sobre a alteridade, a própria experiência banalizada. Ambas as propostas são violentas, cada qual a seu modo. Uma aposta na docilização e no silenciamento do sujeito político - que passa a integrar a engrenagem simbólica de sua própria exploração; a outra aposta na sua desaparição. 

De um ou outro modo, nada me parece mais patético do que ver esta banalização da pobreza, este esvaziamento torpe do sofrimento humano, esta marcação do Outro como se fosse atração de um reality show ou testemunha distante da própria desaparição como sujeito que se insurge. Porque ao fim e ao cabo é isto que este povo espera: que os pobres encaixem numa narrativa ficcional para consumo ocasional e imediato ou que desapareçam de vez do campo de visão. 

Viver na favela mesmo eles não querem, né? 



Para saber mais sobre esta "singular" experiências, veja-se o seguinte link: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/11/hotel-de-luxo-simula-favela-para-turistas-experimentarem-pobreza.html

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Foto 1: http://edition.cnn.com/2013/12/06/travel/shanty-town/

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