É preciso retomar a História



Não sou exatamente a favor do uso de símbolos religiosos para a realização de críticas sociais. Cria-se muita controvérsia em torno do facto e a possibilidade de a mensagem ficar truncada é muito alta. Trocando em miúdos: não sei se vale o esforço, já que boa parte da leitura que a sociedade faz tem sempre como ponto de partida as crenças internalizadas. Há ainda os casos em que se toma a liberdade de expressão por salvo-conduto para justificar o desrespeito e a chacota - em geral elementos constitutivos de um desprezo maior pela Cultura e pelo modo de vida do Outro. Situações de caricaturas com o Islã, por exemplo, não faltam e mostram bem isto. Já disse aqui o que eu achava do episódio do Charles Hebdo.
Apesar de acreditar que a religião em si mais separa do que une, não sou contrária às diferentes manifestações da espiritualidade. Entendo que a espiritualidade é um direito do indivíduo e das coletividades; logo, sou a favor da liberdade de expressão religiosa, desde que ela não afete os direitos das pessoas que não partilham do mesmo credo. Desde que ela não incida sobre os direitos do indivíduo relativamente ao seu corpo e ao seu destino. Quando assim acontece, deixa de ser direito e passa a ser violência.
Mas vamos ao facto polêmico que tem pontuado as redes sociais ultimamente.
A crucificação da transexual pode não ter sido a melhor forma de obter o reconhecimento e o apoio da sociedade para a causa LGBT, mas não se pode negar a força de denúncia que este símbolo - a cruz - evoca. Não se trata de "peitar" uma perspectiva religiosa, mas, numa perspectiva política, de denunciar a humilhação quotidiana a que uma minoria simbólica é submetida todos os dias, na negação dos seus direitos mais básicos. Aos que têm dúvida, que se informem sobre a situação dos travestis, seja em relação à empregabilidade, à moradia e mesmo ao acesso aos abrigos, no caso da população em situação de rua.
Apesar de a travesti ter recorrido ao exemplo do Cristo, é preciso ter em conta ainda que a crucificação não foi uma prerrogativa aplicada apenas a Jesus. Incorrer nesta ideia é ignorância histórica. Também não foram só os "homens santos" que foram punidos por sua rebeldia com a crucificação, a exemplo de Pedro. A crucificação representava, em tempos idos, um dispositivo de punição e morte do Império Romano para lembrar aos não-crucificados o que a desobediência ao Império poderia causar. A história conta, por exemplo, que 6 mil escravos foram crucificados em um só dia - num grupo de 200 mil que revoltaram-se contra Roma em 71 a. C. durante a Terceira Guerra Servil. Ou seja, a crucificação pode ter sido tomada como uma representação cristã, mas não é a única significação histórica que assume.
Aliás, é importante ter em conta que a crucificação sequer é um símbolo ocidental, já que ela, como método de flagelo e morte, foi inventada pelos persas por volta de 533 a.C (ou coisa que o valha). Os persas não eram cristãos. Os romanos podem ter popularizado a prática, mas ela surge fora do contexto ocidental e só se torna símbolo cristão muito mais tarde - ao que parece, na Idade Média. Também é fato a ter em conta que a crucificação ainda é aplicada nos dias de hoje. Em 2013, um rapaz foi crucificado na Arábia Saudita por ter liderado um grupo de jovens no assalto a ourivesarias quando ainda era menor.



Portanto, é preciso perceber a crucificação num contexto mais amplo e histórico e entender que as metáforas estão aí para representar mensagens - não necessariamente impropérios. A cruz pode ser um símbolo religioso, mas não para todos. Ademais, representa, antes, a humilhação, a negação da palavra e de direitos, o pré-julgamento, a manutenção das regras e da ordem social estabelecida (mesmo quando injusta). Antes mesmo de ser um símbolo bíblico, a crucificação é a representação do poder punitivo do Estado, assim como do silencio e da ignorância da sociedade que se cala, sem medo de ser feliz, diante de injustiças que garantam a manutenção do status quo.


Fotos:
Foto 1 - http://www.genizahvirtual.com/2015/06/ofendido-com-o-transexual-crucificado.html
Foto 2 - http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/mundo-insolito/2014-07-12/do-ira-a-arabia-saudita-conheca-os-maiores-assassinos-em-serie-do-oriente-medio.html
Foto 3 - http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-crucificacao-da-artista-transexual-9268.html/

Comentários

  1. Da mesma forma como você entende que as manifestações religiosas são válidas desde que não afetem o direito das pessoas que não partilham do mesmo credo, também há quem pense que as manifestações de promiscuidade e subversão de valores como a parada gay são válidas, desde que não ofendam as crenças e valores dos demais.
    O seu argumento sobre a cruz não ser um símbolo unicamente religioso é até válido. Mas sabemos que a grande maioria dos brasileiros não vai interpretar da forma como você sugeriu, mas como um símbolo bíblico sim, o que torna esse tipo de "expressão" ofensiva.

    A única coisa que essa metáfora fez representar é como essa gente foi capaz de banalizar o sofrimento de Cristo em nome de uma suposta luta por direitos.

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