Quando se prefere limpar privada em Miami: ódio às minorias, narcisismo das diferenças menores e as diferentes colonialidades que o Brasil vive

E eu pergunto: a quê as pessoas chamam exatamente de corrupção? Não ajudarão a corromper a equidade todos aqueles que, de algum modo, se julgam dignos de privilégios, portadores que são de vantagens cumulativas? Por que algumas coisas são evocadas como corrupção - e contra elas se luta ferrenhamente - e outras simplesmente são apagadas como se nunca tivessem existido?

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Digam o que quiserem sobre polarizações, mas o que aconteceu nas últimas manifestações (a de 15 de Março e a de 12 de Abril) é bem mais do que o resultado de uma divergência entre PT e PSDB. Trata-se de um fenômeno mais profundo que precisa ser observado, já que ele tem desdobramentos concretos na vida das pessoas e na sua condição de ir e vir: falamos aqui do ódio de classe. Então todo mundo que estava nas passeatas pertencia à elite? Não, claro que não. Não é preciso pertencer às elites econômica, política e social para se sentir à vontade nestes espaços de ódio. Sim, ódio. Ou você acha que aquele quase linchamento do sujeito com uma camisa vermelha na primeira manifestação, que falava de direito à moradia, é outra coisa senão bile pura? Pois bem, não é preciso pertencer às elites. Basta uma ficção de pertencimento. Basta um desejo de ter algo em comum com elas. Basta comungar de um mesmo imaginário. 



Mais do que um ódio à Dilma (embora este ódio seja concreto, marcado por um imaginário largamente machista) as reações das manifestações de março e abril soam como uma resposta entalada na garganta a algo que transcende a própria figura da Presidente. Resposta das classes mais abastadas (tanto em termos materiais como simbólicos) por verem, na última década, seus privilégios - quase uma herança divina - mudarem de mão. Uma mistura de racismo, colonialismo interno, sexismo e luta de classes. Um caldo naturalizado a tal ponto que há mesmo gente que acredita que a vida é (e, em alguns casos, até deve ser) assim. Gente dormindo na rua. População negra em posições subalternas. Nordestinos entrincheirados como eterna mão-de-obra para o sudeste. Camadas mais pobres da população devendo resignar-se com a falta de terra, casa, comida e oportunidades. Este é o mundo que as elites se acostumaram a ver como natural no Brasil. Este é o mundo para o qual a classe média pouco liga. Se tem gente morrendo nos hospitais públicos? Não é tão importante assim, desde que o plano de saúde não aumente a mensalidade. Nem todos têm acesso à universidade pública? Não é relevante, já que o modelo de meritocracia sempre vai repetir os nomes dos que já foram beneficiados antes. Afinal, o mundo não foi feito pros vencidos. Ao vencedor, todas as batatas.
Assim, o ódio dos últimos dias ultrapassa Dilma, embora sobre ela também recaia com força. Ultrapassa porque se, por um lado, este ódio se volta contra pautas do governo,  caso do bolsa-família, por outro, ele também recai, e recai principalmente, sobre  agendas que Dilma sequer trata como deve - caso das questões indígenas e da reforma agrária, para citar apenas duas. Este ódio coletivo tem uma pauta muito específica, mais clara até do que a agenda do governo - é contra o movimento pela moradia, contra a reforma agrária, contra os direitos dos povos indígenas e quilombolas, contra a melhoria de vida das camadas mais pobres, contra o reconhecimento do direito de minorias, contra o exercício pleno dos direitos reprodutivos e sexuais, contra a redistribuição social de benefícios, contra cotas, contra os direitos das empregadas domésticas, contra a visibilização do trabalho escravo (porque, afinal, esta gente vai lá parar porque quer, né?). E a lista seria bem maior do que esta.

Há uma explicação para este ódio todo. Em um pequeno ensaio sobre a geografia da raiva, o antropólogo Arjun Appadurai retoma um conceito de Freud - o de narcisismo das diferenças menores -, propondo, a partir dele, um outro: o de ansiedade da incompletude. De acordo com este conceito, maiorias numéricas (e também simbólicas) podem se tornar hostis e predatórias quando se defrontam com aquilo que põe em xeque a sua realização absoluta. Assim, conforme demonstra, também, Orlando Patterson, um grupo passa a crer que sua sobrevivência depende da morte social de uma ou mais minorias. 


Vão dizer que estou a aderir ao discurso da polarização. Não, não é isto. Eu também acho que a ruína possível do PT não está neste ódio, mas no incumprimento de um compromisso firmado com as esquerdas e os movimentos sociais que as integram.  Foram estes movimentos e esta esquerda múltipla que, no segundo turno, deram mais um voto de confiança à Dilma. Desde o início bati nesta tecla. Acho, entretanto, que é preciso, em termos sociológicos e não só de análise política, identificar que há uma luta de classes revivida. Da qual alguns corpos oprimidos infelizmente participam porque, como bem lembrou Muniz Sodré,  há uma diferença importante entre situação de classe e posição de classe. O marxismo, aqui, ajuda a explicar. Mas não explica sozinho. Há uma colonialidade de saber, de poder, de gênero que só pode ser entendida olhando-se o contexto e a história do Brasil. Não a História oficial contada, mas as versões que os corpos subalternos têm da mesma História.

Estas múltiplas formas de colonialidade se alimentam dos discursos que circulam no processo de formação da opinião pública. Se a formação da opinião pública e do imaginário social dominante não acontecem sem a construção de narrativas, os discursos, por sua vez, para circularem, precisam de adesão. E como esta adesão acontece? Venício Lima nos lembra que a formação da opinião pública ocorre em forma de cascata. Ou seja, que não há uma opinião pública formada integralmente pela mídia, como muita gente costuma pensar. O processo é bem mais complexo e preocupante - sendo a mídia um ponto nevrálgico, mas nem de longe o único:

“a opinião pública seria formada por pequenos grupos, situados no topo da pirâmide social, e depois viria “descendo”, por degraus, até a base da pirâmide. No primeiro degrau dessa “cascata” estaria o pequeno grupo das elites econômicas e sociais; no segundo, estaria o das elites políticas e, no terceiro, a mídia, seguida pelos formadores de opinião - intelectuais, religiosos, artistas, educadores, líderes empresariais e sindicais, jornalistas - e, finalmente, no último degrau, a grande massa que constitui a maioria da população. Neste esquema teórico, à medida que a opinião “desce”, ela passaria por contaminações horizontais em cada um dos degraus até alcançar a base da pirâmide - vale dizer, a opinião pública dos formadores de opinião não é exatamente a mesma opinião pública dominante” (Lima, 2004: 38).

“A elite dominante é, ao mesmo tempo, a fonte, a protagonista e a leitora das notícias;  uma circularidade que exclui a massa da população da dimensão escrita do espaço público definido pelos meios de comunicação de massa (Kucinski apud Lima, 2004: 36).

O que desejo reforçar aqui? Que as elites econômicas e sociais respondem pela formação, legitimação e disseminação de um discurso que só depois chega às massas (à partida lembremos que elas e as elites políticas são as principais fontes). Deste modo, que expectativa podemos ter de que outras versões dos fatos tenham lugar nos veículos usuais de comunicação? Talvez os veículos alternativos, as rádios comunitárias, os canais em rede e as próprias redes sociais possam mudar em parte esta situação. Mesmo porque estabelecem outros modos de produção e circulação de conteúdos. Mas, provavelmente, só chegarão a quem já estiver interessado em outras versões e leituras dos fatos. A grande massa continuará a levar com a cascata na cabeça e a contribuir para a circulação daquilo que foi produzido como narrativa no contrato de leitura entre veículos e leitores - as elites, neste caso, sempre aparecendo como fontes. Não se pode esquecer, também, do modo como a grande mídia enxerga a hierarquia da credibilidade, sempre em consonância com as estruturas de poder (Manning, 2001). 

Então não há saída? Há, sim. Se por uma lado uma comunicação emancipatória deve ser plantada todos os dias, por outro, passeatas como a de ontem demonstram que sem noção de História não vamos muito longe. Afinal, a formação crítica do cidadão sempre pode suscitar o desejo de questionar as narrativas lisas que cruzam os olhos e os ouvidos das pessoas todos os dias. Não se trata, aqui, de uma mera ampliação do acesso à Educação. Não resolveria o problema. Como mostra uma pesquisa do Índex sobre o perfil dos manifestantes só na cidade de Porto Alegre, no 15 de Março, 68,4% tinham educação superior. O acesso à educação não é garantia de sensibilidade política.

Educação libertadora é a educação que estimula a inquietação e a pergunta. Onde foi parar o pensamento crítico, a capacidade de fazer crianças, jovens e adultos pensarem sobre sua própria realidade? O modo como determinados conteúdos são ensinados - a História, a Geografia, a própria Sociologia e a Filosofia - é determinante para dar forma a um pensamento sensível ou não às questões que aí estão - desigualdades profundas, um apreço inegável pela diferenciação social, naturalização do processo continuado de corrosão da dimensão política. Quando foi que ver gente sem casa, sem comida, sem condição de expressão se tornou banal, corriqueiro?

Vivemos tempos de banalização do mal, para lembrar Hannah Arendt. 


Esta banalização do mal - que se traduz na indiferença absoluta pela vida do Outro - tem um combustível. Ela se alimenta, nos dias de hoje, daquilo que Boaventura de Sousa Santos (2006, 2007a) denominou de naturalização de uma hierarquia das diferenças. Através deste modo de produção de ausência (um dos cinco que relata Boaventura), diferenças são convertidas em desigualdade e transformadas em justificação para a manutenção de privilégios e a desqualificação da alteridade. Quando isto acontece, a violência banaliza-se. A barbárie deixa de ser percebida como tal.

Na Argentina, crianças indígenas são ensinadas a comemorar, no ensino da História, a figura do General Roca como herói. Bom, Roca foi responsável por um importante genocídio indígena no século XIX. As homenagens a este ser infame ficaram restritas à Argentina? Não. Virou nome de rua na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ou seja, no Brasil não é diferente. Em nome de uma neutralidade (científica) que não existe, naturalizam-se vários episódios violentos da História. Cacos da colonização deixados nos corpos e nas almas através de gerações são permanentemente ignorados. Repetem-se pensadores e modelos europeus como se eles fizessem parte de um catecismo. Vivemos em pleno processo de colonização do imaginário, como já advertira o sociólogo peruano Aníbal Quijano. Este processo de colonização do imaginário, infelizmente, se legitima a partir da experiência familiar e da escola. Há quem faça diferente? Claro que sim. E ainda bem. Nem tudo está perdido. Há quem pense o saber de forma diferente, ajudando a fomentar um pensamento crítico. Estão aí a Química Crítica (calcada na formação do cidadão para as decisões do dia a dia), a Etnomatemática (que valoriza as experiências concretas de grupos subalternizados), as leituras pós-coloniais e descoloniais da História (que acordam para versões da realidade que não constam no cânone) - e outras tantas experiências que mostram que nem tudo está perdido.

Em tempos de acirramento do narcisismo das diferenças menores, perguntas precisam ser feitas: como se constrói simbolicamente o pertencimento de classe? Como se fomenta o desejo da diferença? Como se matura em fogo brando a indiferença pela vida das minorias? Em que espaços e como se legitimam e naturalizam as violências quotidianas (de género, de sexualidade, de classe)? Que papel a escola e a universidade têm em desfazer equívocos, inclusive epistemológicos, acerca do que é saber, do que é economia, do que é política, do que é direito? Penso que a escola e a universidade têm um papel importante nisto tudo - no levantamento de perguntas mas, também, como não poderia ser diferente, no enfrentamento de algumas respostas fáceis e falsas que a sociedade insiste em fazer circular no imaginário social.

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Sugestões de leitura:

Appadurai, Arjun (2009), O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva. Rio de Janeiro: Iluminuras.

Kucinski, Bernardo (1988), A síndrome da antena parabólica. São Paulo: Perseu Abramo.

Lima, Venício (2004), Duas questões de Comunicação Pública. Revista Comunicação, Mídia e Consumo, v. 2, n. 3.

Manning, P (2001), News and news sources: a critical introduction. London: Sage.

Patterson, Orlando (1982), Slavery and Social Death: a comparative study. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

Quijano, Aníbal (1992), 'Raça', 'etnia' e 'nação' em Mariátegui. Cuestiones abertas. In: Rolando Forgues (ed.) Juan Carlos Mariátegui y Europa. La otra cara del Descubrimiento. Lima: Amauta.

Santos, Boaventura de Sousa (2007a), Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo.

Santos, Boaventura de Sousa (2007b), "Para além do pensamento abissal". Revista Crítica de Ciências Sociais: 78, 3-46.

Santos, Luciane Lucas dos (2012), A Educação para o consumo no espaço da escola: criando as bases para o consumo crítico e solidário. In: Juscelino Dourado; Fernanda Belizário (org.) Reflexão e práticas em Educação Ambiental: discutindo o consumo e a geração de resíduos. São Paulo: Oficina de Textos, 69-89.

Valko, Marcelo (2010). Pedagogía de la Desmemoria. Crónicas y estrategias del genocidio invisible. Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo.

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PS: todas as fotos foram tiradas do facebook, tendo as mesmas circulado em diferentes perfis

Comentários

  1. Uma análise brilhante! Orgulhoso por pertencer ao seu rol de amigos.

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    1. Sergio, querido, que bom te ver por aqui! Suas opiniões são sempre preciosas pra mim! Um beijo grande!

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  2. Diálogos e reflexões como estas nos ajuda a romper com o velho e repensar nossas ideias e conceitos. Acredito que as conversas e exposições possuem um grande potencial transformador. Ótima postagem!

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    1. Oi, Leandro! Fico contente que o post tenha suscitado reflexões. Um forte abraço!

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