O consumo no espaço da escola - ampliando o que já foi dito
Fonte: http://afrm.webnode.pt/ |
O consumo não é um ato solitário. Isto quer dizer que ele não é tão
individual como muitos de nós acreditamos. O coletivo tem papel
importante nas decisões de consumo dos indivíduos, já que os sentidos em
circulação nos bens são sociais. O consumo individual, portanto, tem,
por trás dele, um olho coletivo. Como intervir, então, nas
representações sociais hegemônicas - nas idéias dominantes de beleza,
verdade, justiça, elegância, diferença etc?
Se os pais
têm papel, em primeiro plano, nos hábitos de consumo dos filhos, a
escola não ocupa um lugar menos importante. Deve debater e refletir
sobre o mundo vivido, os valores em curso na sociedade, o resultado da
disseminação destes valores. Isto não significa que ela deva ser
responsabilizada isoladamente pelas idéias com que as crianças chegam em
casa. É preciso entender que a escola é um microcosmo da vida em
sociedade; nela, manifestam-se os vários "pensares". E é bom que esta
interação aconteça. Por outro lado, a escola não deve eximir-se de seu
papel por conta das orientações que o aluno recebe em casa. De novo: a
escola é um microcosmo do mundo vivido, reunindo inevitavelmente muitos
olhares e perspectivas. É importante que a escola estimule não só uma
ponderação mais crítica da realidade, como também prepare os muitos
"pensares" para que interajam entre si e para que busquem pautar-se por maior justiça social. De modo geral, família e escola
devem compartilhar o trabalho de reflexão sobre as transformações nos sentidos de infância/adolescência, como serem,
ambas, espaço de estímulo para outras experiências de troca e consumo
cultural.
No caso específico da escola, a discussão
sobre o consumo deve ser mais profunda e não resumir-se a trazer o
consumismo como tema de debate em uma ou outra aula. As veias internas
do consumo como fenômeno social precisam ser expostas para que sejam
estimuladas novas práticas na vida da criança / adolescente. É preciso,
por exemplo, ensinar ciência, biologia, química, sim, mas também expor o próprio
discurso científico na sua pseudo-neutralidade. O modelo de produção
que hoje referendamos, as tecnologias que empregamos, os avanços da
tecnociência que aplaudimos têm efeitos no mundo concreto. E nós muitas vezes ignoramos o quanto o discurso científico (bioquímico, biomédico etc) tem se constituído como argumento para corroborar e/ou criar auras em torno de objetos de consumo que povoam nosso imaginário. Ainda assim e
na contramão destes efeitos, a ciência é ensinada nas escolas como
neutra, como a forma mais nobre de saber. Sempre como se outras formas
de pensar o mundo fossem rigorosamente anacrônicas e sem valor.
Parecemos ignorar que, por trás do discurso científico, hoje, subjaz um
modelo de performance, de corpo, de vida, de limite.
Fonte: http://designceramico.com.br/2010/01/21/havaianas-invadem-as-praias-brasileiras-no-verao-2010/ |
Refletir sobre o consumo é tarefa, como disse, bem mais ampla do que um debate solitário acerca dos excessos. É preciso expor, em aulas diversas, o apartheid social que resulta da própria
transformação do espaço em mercadoria (a cidade não é pra todos; basta ver a distribuição desigual dos equipamentos urbanos nos grandes centros). Do mesmo modo, é preciso
debater algumas representações dominantes nos livros escolares. Há manuais que chegam a incluir anúncios de produtos e jingles em exercícios de classe. Infelizmente, não é comum que estas "inserções" despertem a crítica necessária por parte de pais e professores.
Dizem
que a escola tem que ser neutra. Contudo, sua aparente neutralidade faz
circular conceitos de crescimento e desenvolvimento que se tornam
palavras de ordem. Quem questiona o que o crescimento implica e a quem
se destina? Porque desenvolvimento é uma palavra a priori boa nos livros
escolares?
Exemplos não faltam para levantar maiores
reflexões. Enquanto cartilhas e livros enaltecem o agronegócio com o
seu "crescimento para o país", nem sempre trazemos à superfície alguns
saberes usualmente silenciados em aulas de História e Geografia
(da troca de sementes entre camponeses para manter a diversidade biológica às tecnologias de produção próprias empregadas pelos povos originários do altiplano andino para um manejo inteligente de sementes que leva em conta a altitude e os tipos de solo). É preciso criar o respeito por outras
culturas e ensinar que a diferença não é má, desde que ela possa manter
como igual a condição de conversa. Um camponês não é residual no seu
conhecimento em relação à tecnologia do agronegócio. Esta hierarquia
construída por uma imaginário tecnológico naturalizou-se entre nós. É
preciso que a escola estimule ouvidos e olhos para as mundivisões.
A
diferença deixa de ser fator de enriquecimento sempre que vira
distinção social - uma das molas mestres do consumo. Se o consumo gera
pertencimento e é hoje um dos principais marcadores identitários, é
preciso que a escola fomente com criatividade outros modos de
construção e fortalecimento da identidade, que estimule outros modos de
integração e reconhecimento de grupo. Circuitos diretos de troca ou com recurso à moeda social podem
ser uma saída criativa para redimensionar politicamente o valor das
trocas na constituição da identidade. Podem, também, desatrelar o
consumo cultural do aspecto monetário que hoje o inunda. Não seria
oportuno que os professores estimulassem clubinhos de gibis, de brinquedos, de material escolar? E por que não estimular a troca de saberes e
habilidades entre as crianças, potencializando a solidariedade e a valorização dos conhecimentos diversos que podem ter? As possibilidades de troca entre os alunos podem ser
múltiplas, ajudando a desconstruir a idéia de que o dinheiro seja a
única mediação possível nas trocas. Da mesma forma, descortinar, em sala de aula,
rituais não-ocidentais de troca a partir da geografia, da sociologia,
da etnomatemática, pode ser útil para desmistificar a idéia de que formas
de troca que não envolvam dinheiro sejam qualitativamente inferiores.
Fonte: http://serenaandrea.wordpress.com/2012/02/06/etnomatematica/ |
Debater,
na escola, o consumo é também debater a descartabilidade que
caracteriza o contemporâneo. Antes de incensar a reciclagem, é preciso
fazer as crianças refletirem sobre o caráter dúbio da velocidade, da
inovação, da criação de objetos novos em folha. Contar a história de
Leônia pode ser um bom começo e uma boa metáfora. Cidade invisível de
Ítalo Calvino, Leônia mostra o modo automático como nos viciamos na
novidade, não percebendo mais os custos sociais e ambientais deste mundo
permanentemente fresco e renovado. Conforme denomina Beatriz Sarlo,
trata-se, hoje, de "colecionar atos de consumo". Neste sentido, seria
bom que a escola investisse em soluções pedagógicas capazes de fazer ver
o dia seguinte do nosso "enaltecimento" ao descarte e inovação
tecnológicos. Muitas são as formas de suscitar esta curiosidade e esta
percepção: fotografar o que está no lixo, buscar saber que fim as
pessoas dão aos seus celulares, investigar em que países vão parar os
computadores velhos de que se desfazem, por exemplo.
Em
suma, a reflexão sobre o consumo, do ponto de vista pedagógico, precisa
ser redimensionada. Os excessos de consumo sempre preocupam os pais, é
verdade. Mas o nó górdio do consumo é anterior. Tem a ver menos com a
quantidade e mais com a própria natureza do consumo que legitimamos. O
consumo é um sistema de classificação social, já nos tinha advertido, de
formas diversas, Simmel e Veblen (no século XIX) e Bourdieu, mais
recentemente. Logo, o debate sobre o consumo é, antes, um debate sobre
os valores que o mercado dissemina e a que o espaço da escola, como
parte do mundo vivido, não está imune. Uma escola realmente preocupada
com este tema deve introduzir questionamentos sadios nos diversos
programas de aula (incluindo química, física, biologia, além das
matérias de natureza "social"), além de criar situações (visitas, aulas
na rua, fotografias, gravação in loco, produção de infográficos em
sala etc), em que a criança/adolescente tome contato com a realidade
resultante de um mundo que escalona pessoas pelo que têm.
É desta forma que a educação pode, efetivamente, contribuir para a emergência e a consolidação de novas formas de consumo - seja suscitando entre as crianças novas práticas, seja estimulando, entre os pais, a convivência com as novas ideias trazidas pelas crianças.
É desta forma que a educação pode, efetivamente, contribuir para a emergência e a consolidação de novas formas de consumo - seja suscitando entre as crianças novas práticas, seja estimulando, entre os pais, a convivência com as novas ideias trazidas pelas crianças.
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