Neoextrativismo, políticas económicas e o direito como forma de dominação



As questões indígenas no Brasil merecem, mais do que nunca, atenção. Enquanto, em outros países da América Latina, o reconhecimento dos direitos indígenas vai tomando força - no respeito à autodeterminação, às formas de organização sócio-cultural, económica e territorial e à afirmação de uma justiça indígena - a questão indígena no Brasil parece sofrer reveses importantes. A legislação aparece como um dos grandes entraves ao reconhecimento da dívida histórica para com estes povos.

A opinião pública necessita abrir os olhos antes que seja tarde. É preciso impedir a sinergia macabra entre as PECs 215 ou 38, a Portaria 303 (da Advocacia Geral da União) e o PL 1610/96 (sobre recursos naturais em terras indígenas)! Lembremos que o Código Florestal já aí está. E ele não só significa uma permissividade ampliada com relação à extração ilegal de madeira, como também barra o acesso das populações indígenas aos programas de manejo florestal no que diz respeito aos recursos que se encontram em seus territórios. O Código Florestal é o avanço do agronegócio sobre os territórios ancestrais.

A PEC 215 propõe que seja do Congresso Nacional a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas (já a PEC 38 propõe que seja o Senado a fazê-lo). Isto significa, todos sabemos, uma barreira política aos processos de demarcação. A Portaria 303, por sua vez, em consonância com o Código Florestal, separa os povos originários dos recursos que estão em suas terras. Ou seja, restringe o usufruto dos bens e recursos por parte destas populações, ainda que tais bens e recursos se encontrem em terras indígenas. Se o Código Florestal abre o caminho ao retrocesso em relação aos direitos coletivos, a Portaria 303 pavimenta a estrada que confirma o grande latifúndio. Mas a questão não pára aí: a partir da Portaria 303, as demarcações já estabelecidas podem ser revistas e reconsideradas. 

O projeto de lei 1610/96, bem como seu texto substitutivo, complementam o cenário de retrocesso. Versam, ambos, sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas - sempre, é claro, com a alegação do interesse nacional. Segundo este Projeto de Lei, alcunhado de PL da Mineração - de autoria do deputado Romero Jucá (PMDB-Roraima) -, a consulta pública passa a ser um ato mais simbólico do que deliberativo e não interfere na continuidade do processo de exploração mineral. Os direitos sobre estes recursos deixam de ser dos povos indígenas, de modo que qualquer empresa interessada pode requerer junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DPNP) o direito de minerar nestas terras. É de se prever os resultados da aprovação desta lei.

O CIMI - Conselho Missionário Indigenista - mostra outra implicação do texto substitutivo deste PL:

"Junto com o desrespeito ao direito de Consulta e na contramao dos preceitos Constitucionais, o substitutivo reaviva a figura da tutela sobre os povos indígenas. Caso não haja concordância "das comunidades indígenas" na realização das atividades de exploração mineral nas terras por eles ocupadas, o processo será encaminhado a uma "Comissão Deliberativa", sem participação indígena, que "decidirá", dentre as propostas apresentadas, "qual a melhor" para as comunidades indígenas afetadas". 

Com a orquestração destes documentos - PEC 215 ou 38, Portaria 303, PL 1610/99 e Código Florestal - fica aberto o caminho para os megaprojetos (hidrelétricas, mineração e agronegócio) nos territórios indígenas, à revelia de suas opiniões e princípios de organização social, cultural e económica. Trata-se de um projeto neoextrativista para o país, de que Plano Nacional de Mineração 2030 (PMN) é uma peça-chave. Basta olhar para ele e logo se porque é tão importante avançar terra indígena adentro.


Fonte da imagem: CPRM. Veja-se em http://racismoambiental.net.br/2012/09/por-tras-de-belo-monte-o-ouro/

Neste momento, a PEC 215 tramita na Câmara e o Deputado Mandetta (DEM-MS) propõe uma comissão especial para proferir um parecer relativamente à PEC 215. Já o PL 1610/96 deve ser votado no segundo semestre de 2013. A Portaria 303, por sua vez, ainda não vingou, mas mobilizações políticas adversas podem mudar o sentido dos ventos. Felizmente, nem tudo está perdido. Os povos indígenas brasileiros estão em conversa com a OAB para que esta revise toda a legislação inerente à demarcação. Ao que parece, a OAB está atenta para as condições de inconstitucionalidade das PECs. 

Mas e a sociedade civil, o que faz? E os ativistas, que papel têm?

A todos nós, que apoiamos a causa indígena, cabe o acompanhamento diário destas medidas, num momento em que todos estes documentos apontam para uma orquestração perigosa que legitima e consolida o colonialismo interno (Santos, 2007) no âmbito da Economia Brasileira. O neoextrativismo que o modelo desenvolvimentista brasileiro está preconizando é perigoso. É hora do governo federal garantir coerência na sua opção pelos excluídos.

Ou é ou não é. Não sou muito de referenciar textos bíblicos, mas, nesta hora, a metáfora dá jeito: "ou quente ou frio; morno eu te vomito". 


==

Referências Bibliográficas:

CIMI (2012), Essa terra tem dono, mineração assim não! Informe n. 1035. Disponível em http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6556&action=read

Santos, Boaventura de Sousa (2007), "Para além do pensamento abissal". Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, outubro 2007: 3-46. Disponível em http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/147_Para%20alem%20do%20pensamento%20abissal_RCCS78.pdf

==

Sugestão de leitura:

Para saber mais sobre o interesse emergencial pelas terras indígenas, ler o excelente artigo de Telma Monteiro, "Por trás de Belo Monte, o ouro?":  http://racismoambiental.net.br/2012/09/por-tras-de-belo-monte-o-ouro/

Comentários

Postagens mais visitadas